Cinco anos depois, massacre em Alcaçuz pode ficar impune

Cinco anos após o massacre de Alcaçuz, o caso corre o risco de ficar sem solução. O Ministério Público do RN apresentou, em julho de 2021, a denúncia relativa ao massacre que vitimou 27 pessoas em janeiro de 2017, mas o juiz Tiago Neves Câmara, da comarca de Nísia Floresta, determinou que os promotores individualizem as condutas dos 77 acusados, sob pena de rejeição da denúncia. Fontes próximas à promotoria afirmam que, pelas circunstâncias do caso, é impossível dizer exatamente o que cada um dos acusados fez. O risco de que o caso fique sem solução é real.Em 17 de dezembro do ano passado, o MP remeteu o processo para a Unidade Julgadora de Delitos de Organizações Criminosas, localizada em Natal. Contudo, o teor do documento não pode ser conhecido. O juiz Tiago Neves colocou o processo em segredo de Justiça, na última sexta-feira (21), após a reportagem da TRIBUNA DO NORTE pedir acesso ao conteúdo do processo. A Justiça confirmou que o MP respondeu as diligências, mas não há prazo para uma decisão.

A denúncia que o Ministério Público remeteu à Justiça em julho é baseada no inquérito de 2.610 páginas da Polícia Civil, que indiciou 74 detentos pelos crimes de homicídio consumado, associação criminosa, motim e dano ao patrimônio público, além de outros 132 internos por falso testemunho, na investigação que demorou 2 anos e 10 meses e foi concluída em novembro de 2019. O MP formalizou denúncia em julho de 2021, mas a Justiça devolveu o processo ao órgão ministerial dois meses depois pedindo que a situação de cada um dos denunciados fosse individualizada a partir do desmembramento do caso.

O magistrado solicitou que fosse detalhada a participação de cada um dos indiciados em cada uma das mortes. “Destaco que o art. 41 do CPP [Código de Processo Penal] impõe a necessidade da exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, de modo que cabe ao Ministério Público, no oferecimento da denúncia, detalhar a participação de cada um dos acusados, delineando qual crime foi praticado por cada um dos indiciados e ainda expor todas as circunstâncias, sob pena de rejeição da denúncia, nos termos do art. 395, inciso I do CPP”, diz trecho da decisão assinada pelo juiz Tiago Neves Câmara.

A peça do Ministério Público narra que a matança teria ocorrido em decorrência de ordem da cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa oriunda de São Paulo, que rivaliza com o Sindicato do Crime, organização criminosa local. De acordo com o MP, as mortes também teriam relação de vingança, em retaliação a uma rebelião em Manaus, no Amazonas.

“Tais fatos se deram em decorrência de disputa de poder, já que as vítimas estavam presas em pavilhão rival daquele que os denunciados estavam recolhidos, o que os levava a crer que pertenciam à facção Sindicato do Crime e, por isso, também vingar as mortes de integrantes da referida ocorridas em Manaus/AM, algum tempo antes da rebelião ocorrida no Rio Grande do Norte”, diz trecho da denúncia, que não tipifica as condutas.

Portanto, o texto retornou ao MP, que remeteu novamente à Justiça em dezembro passado. A reportagem da TRIBUNA DO NORTE solicitou a denúncia e tentou entrevistar a promotora responsável, mas o órgão não se pronunciou. O caso segue sem desfecho, uma vez que ninguém foi julgado e condenado até então. Na sexta-feira (21), o processo entrou em segredo de Justiça.

O titular do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio Grande do Norte (CEPCT/RN), Gustavo de Aguiar Campos, indica que o desfecho do caso é um dos elementos para evitar novas rebeliões no sistema penitenciário potiguar. “A gente tem uma fragilidade nos processos que envolvem pessoas privadas de liberdade e nesses processos que envolvem o próprio Estado. O julgamento é muito importante porque a gente tem cinco anos desse massacre e pouco foi feito, mas também é preciso pensar em como esse julgamento vai servir para ajudar a solucionar o problema do sistema penitenciário”, comenta.

Em setembro, a Justiça também pediu que o MP se manifestasse sobre a morte de um dos investigados, bem como a fuga de diversos outros. Hoje, não há um número oficial de presos considerados foragidos ou sumidos. Ainda em 2017, no mês de março, seis peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) apontaram em relatório que 71 presos, custodiados no complexo penal de Alcaçuz, haviam sumido durante o motim.

Em 2018, um ano após o episódio, o número de presos considerados “sumidos” mudou para 16. “Eles vieram aqui e fizeram essa inspeção em Alcaçuz depois do massacre. Esse dado foi levantado com os familiares porque a Sejuc [Secretaria de Justiça e da Cidadania, responsável por Alcaçuz à época] não tinha um quantitativo dos presos. Os computadores não tinham os nomes, ninguém sabia quem tava preso e quem não tava. No massacre existiram pessoas que podem ter fugido e que não tinha registro. Por isso há essa inconsistência porque a Sejuc não tinha dados”, explica Candida Souza, titular do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Nova estrutura

O Complexo Penal de Alcaçuz foi repaginado e hoje conta com seis pavilhões, sendo um deles construído do zero. A unidade é formada por duas penitenciárias, divididas por um muro: Doutor José Francisco Fernandes (pavilhões I, II, III e IV de Alcaçuz) e Rogério Coutinho Madruga. Esta última possui dois pavilhões: I (antigo pavilhão V de Alcaçuz) e II (antigo pavilhão IV de Alcaçuz). O titular da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) Pedro Florêncio, diz que as medidas são uma resposta ao massacre.

O secretário informou que as mudanças permitiram que a Seap avançasse em ações de cumprimento a Lei de Execuções Penais (LEP). De acordo com a pasta, de 2019 para cá o novo ambiente possibilitou a criação de espaço multiuso para educação; cursos de capacitação de pedreiros, eletricistas, encanadores e pintores para os internos; aulas para ensino médio e erradicação do analfabetismo; instalação de consultório médico e odontológico; implantação de equipes de saúde; implementação de um sistema de monitoramento eletrônico; contratação de policiais penais; e aquisição de armas e viaturas.

A nova estrutura ganhou equipamentos como portal detector de metais, algemas, além de armas letais e não letais, que estão à disposição dos agentes e são utilizados para evitar novas fugas. O último episódio dessa natureza foi registrado em julho do ano passado, quando 12 presos fugiram da Penitenciária de Alcaçuz. Antes, um preso tido como “de confiança” havia fugido do presídio em fevereiro de 2018. Ainda segundo a Seap, outra frente de atuação no combate aos motins é o sistema de monitoramento eletrônico.

Um body scan, aparelho de raio-x com tecnologia de última geração, usado nas visitas foi instalado em agosto de 2019. As duas cabines com o aparelho acabaram com a chamada “revista vexatória”, antiga reclamação dos familiares dos presos, que precisavam ficar nus antes de adentrar os corredores dos pavilhões. Agora, o visitante é cadastrado em um banco de dados biométrico e submetido ao procedimento, que dura aproximadamente 20 segundos. O objetivo é evitar a entrada de armas, drogas e telefones.

Comitê denuncia maus-tratos e superlotação

De acordo com os profissionais do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, há riscos de novas rebeliões no Rio Grande do Norte, a exemplo da que ocorreu em Alcaçuz. De acordo com a representante do RN no órgão nacional, Cândida Souza, elementos como superlotação, agressões e maus-tratos seguem acontecendo de forma recorrente . A ativista dos direitos humanos reconhece melhorias na infraestrutura da unidade, mas alerta para a forma como o detento é tratado.

“Vai acontecer daqui a pouco de novo. Não teve culpabilização dos responsáveis, assim como não teve em relação às reivindicações. A rebelião foi resultado de más condições, de 32 pessoas dormindo em uma cela que cabia quatro. Essa é uma realidade que ainda acontece hoje”, argumenta.

De acordo com a Seap, 1.715 estão custodiados em Alcaçuz hoje. A capacidade da unidade é de 967 vagas, mas um termo de cooperação firmado entre Seap, MP, Defensoria Pública e Justiça fixou a capacidade máxima em 1.934 vagas. O acordo, feito em julho de 2021, levou em consideração a reformulação no sistema prisional e a reforma de Alcaçuz.

Nos meses de agosto e novembro, um grupo de trabalho do comitê inspecionou a unidade e identificou irregularidades. O diagnóstico completo da penitenciária será publicado no primeiro semestre deste ano.

“Visitamos o Pavilhão IV de Alcaçuz, que é o mais populoso e algumas questões continuam acontecendo desde o massacre, práticas de maus-tratos, tortura, tratamentos degradantes dentro do sistema. Tem um cotidiano de práticas, denominado de ‘procedimento’. São xingamentos, tapas, socos e empurrões e isso faz com que o preso se rebele contra o sistema”, afirma Gustavo de Aguiar, membro da equipe do comitê que visitou a unidade recentemente.

O chefe da Administração Penitenciária do RN, Pedro Florêncio, reconhece “excessos” e afirma que as denúncias são investigadas. “Maus-tratos e tortura têm que ser combatidos diariamente. A gente mantém diálogo permanente com os policiais, explicando que essa pessoas devem ser ressocializadas. Excesso, a gente reconhece que acontece, agora todo excesso deve ser encaminhado ao MP”, diz.