ENTRE EXTREMOS E VÍTIMAS

Ionara Nunes dos Santos

Na semana passada, vimos com perplexidade a enorme polêmica e porque não dizer a imensa histeria, do caso da menina de dez anos do Espírito Santo vítima de violência sexual desde os seis, onde o agressor era seu próprio tio, ou seja, alguém da confiança da família.

Essa história por si só já é dramática por se tratar de um caso de violência sexual, infelizmente por não se tratar de um fato isolado no nosso país – os índices de violência sexual são imensos – mas ela vai piorando muito porque o terrível ato foi praticado contra uma criança e, pior, resultou em uma gravidez extremamente indesejada.

Apesar de ser permitido no Brasil por lei o aborto em casos de estupro, risco à vida da mãe e se o feto for anencéfalo, houve uma macabra divisão que parecia guerrilha entre os grupos favoráveis e contrários ao aborto da criança, pois ela conseguiu na justiça a permissão para realizá-lo.

Ora, se a lei permite, se o caso em si é nitidamente da proteção à vítima de um crime, então por que houve tamanha polêmica? Não é muito difícil descobrir: essa abjeta situação reflete a violência ainda muito grandiosa e presente contra as mulheres que mesmo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e o endurecimento do Código Penal em seus artigos relativos a crimes sexuais, faz vítimas todos os dias.

E para piorar a vítima nem é uma mulher, pois ainda é uma menina, o que torna tudo mais covarde, pois grupos extremistas religiosos tiveram a ousadia de ir para a porta do hospital agredir a vítima e os profissionais de saúde que cumpriam a decisão judicial, chamando-os de assassinos, mas não se ouviu por parte deles nenhuma palavra a respeito da violência praticada contra a criança.

Cabe aqui uma pergunta: essa gente iria ajudar essa menina a criar o fruto do estupro? Vai oferecer ajuda psicológica que certamente ela vai precisar pelo resto da vida provavelmente? E mais, a pessoa que cometeu tal ato contra a vítima foi absolutamente esquecida e só se resumia a falar da menina que estava sendo mais uma vez vítima: da violência sexual e da violência psicológica, caso infelizmente ainda muito comum em nosso país, as vítimas são culpadas pelos crimes que cometem contra elas.

O mais absurdo é que para tal intento diversos crimes foram cometidos: os dados da criança foram expostos, calúnias foram ditas, tentaram impedir uma decisão judicial, além do estupro continuado. E tudo isso por quê? Porque nossa sociedade ainda se sente dona dos corpos femininos, porque a sexualidade feminina ainda é vista como algo criminoso e, mesmo que envolva uma fato criminoso como este, quando se trata de alguém do gênero feminino, a credibilidade da vítima é colocada em dúvida, gerando comentários abjetos de mulheres ditas “cidadãs de bem” nas redes sociais afirmando, sem jamais terem visto a menina, “que ela não é tão inocente assim”.

E para piorar a situação se perdeu uma importante oportunidade de se debater os alarmantes índices de estupro contra meninas e mulheres no Brasil, pois um caso com tamanha repercussão deve fomentar o debate entre agentes da lei, da política e da sociedade como um todo para a criação de mecanismos de maior combate à violência sexual, além da educação como medida de prevenção de situações como esta nas famílias.

O caso da menina de dez anos do Espírito Santo poderá ser facilmente esquecido pela mídia, pelos extremistas e até pelos apoiadores dela, mas não deverá ser esquecido pela sociedade, pois é preciso soluções que impeçam que outras vítimas surjam. Parece um sonho distante, mas é nossa tarefa transformá-lo em realidade.