A condenação de Lula
Por Luís Fernando Vitagliano*
Qualquer pessoa mais atenta e que acessou as gravações do depoimento de Lula dia 10 de maio vai perceber que Sergio Moro já deu sinais de quais argumentos vai usar e como procederá para condenar Lula. Quando o juiz justifica por que as perguntas fora dos autos são importantes e quando o advogado observador da OAB-PR, Rene Ariel Dotti, que representa a Petrobras na acusação, se destempera sobre os protestos da defesa que queria delimitar o interrogatório aos limites dos autos, e parte das elites jurídicas reacionárias dentro do direito se veem representadas pela fala de que a análise do caráter do réu é parte fundamental da análise do juiz, dão pistas do que está por vir.
É o argumento de Rene Dotti que vai justificar a condenação a Lula. Dotti é professor de direito penal na UFPR, não por acaso a mesma instituição em que Sérgio Moro é professor.
Pelo depoimento de ontem, baseado nas perguntas do juiz Moro e no destempero de René Dotti, posso antecipar a sentença a Lula? Esse artigo é uma tentativa de leitura do depoimento a partir das perguntas dirigidas ao ex-presidente por parte do juiz Sérgio Moro e se fundamenta em uma tese muito difundida por críticos aos abusos cometidos pela 5ª Vara de Curitiba: Lula nunca foi réu, nunca teve sua defesa garantida, nunca se supôs sua inocência e, quando indiciado, já estava condenado – as investigações são apenas para justificar sua condenação e não para decidir se há provas para isso. Nesse sentido, frágeis ou não, os argumentos para a condenação são apenas pró-forma, estágio necessário para a teatralidade que toda operação que se realiza em torno do ex-presidente se concretize.
Lula obviamente não estava sendo analisado a partir dos seus atos, ou seus atos não dão argumentos para condenação. Então, será preciso ampliar o escopo para argumentar em favor da sentença. E o argumento da condenação obedecerá a mais retrógrada das doutrinas jurídicas: a análise do caráter.
Justifica o juiz: em 2005 o então presidente Lula dizia se sentir traído por membros do governo que cometeram desvios e foram condenados pelo processo do mensalão. Já em 2014, Lula tinha outro discurso, conivente com os condenados e repulsivo à justiça. O eminente juiz dá a entender que há evidente desvio de caráter em Lula, que aquele presidente que era a favor das investigações e das condenações ao longo do seu mandato e fora da presidência tornara-se parte conivente e interessada da corrupção. Nesse argumento, Lula será condenado porque se somam os indícios (não comprováveis) de desvio de função e tráfico de influência com a personalidade destorcida pela mudança do caráter do ex-presidente.
Em claro português: Lula será condenado primordialmente por preconceito de classe, depois por desentendimento do que é política e total incompreensão do que é uma gestão pública e o papel de um presidente da república ou de um político. Para isso, a necessária materialidade do crime se torna desnecessária.
Moro analisou, portanto, o caráter de Lula e tem provas de sua mudança para uma mentalidade criminosa, deduzirá isso do depoimento e das declarações de Lula à imprensa. Condenará sem laudo psicológico ou materialidade, mas a partir da relação entre as evidências: desvio de caráter do réu e indícios de crime apontados pelas testemunhas. Se é possível estabelecer uma relação causal entre as coisas? É como se supor que uma carteira que estava em cima da mesa foi roubada por alguém que estava próximo. Por quê? Você estava perto, é possível e porque seu caráter demonstra que em algum momento da sua vida você proferiu a frase: “achado não é roubado”. Essa é mais ou menos a lógica do criminalista René Dotti ao se contrapor à defesa e dizer que a análise do caráter de Lula orienta o interrogatório de Moro.
O argumento positivista de que o caráter ou a origem inata do criminoso é argumento suficiente para a condenação sumiram do direito contemporâneo por um motivo muito simples: a história mostrou a quantidade de erros e condenação de inocentes, o que desmonta a tese das análises inatas e adquiridas da personalidade. É aquele argumento que leva a supor que judeu tem tendências a desvio de caráter, que negro é propenso à baixa inteligência, que cigano é predisposto à bandidagem. É o argumento que supõe que petista não sabe governar ou que governa desonestamente, mas que governa bem e com mais honestidade que outros? Impossível pelas possibilidades da determinação positivista do direto.
Parece uma ideia estúpida, mas é essa a linha de interrogatório que seguiu Moro. Recortar e colar os discursos de Lula fora de contexto só mostra que o juiz precisava de uma “materialidade” (declarações soltas de Lula à imprensa) de que ele teria mudado de posição quanto à corrupção para dizer que o caráter do ex-presidente é ou tornou-se corrupto e que isso associado à atitude leniente com criminosos do seu partido leva a supor que Lula desviou-se da conduta moral de um réu inocente. O argumento parte do suposto jurídico de que o juiz é capaz de analisar (como um profissional do divã – neste caso, sem laudo técnico) o caráter de um réu.
No melhor estilo positivista lombrosiano, Moro já determinou no seu interrogatório que Lula é uma figura perigosa e de caráter corrupto. Não tem provas, mas suas convicções mostram que um filho de retirante nordestina, que foi engraxate e se tornou torneiro mecânico nas fábricas do ABC não pode ter caráter de presidente, não pode desempenhar essa função corretamente. Por trás disso, existe o preconceito sempre presente nas elites brasileiras de que Lula não pode dar certo e, se deu, é preciso condená-lo e
*Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.